Reflexão proposta pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura para este IV Domingo da Quaresma:
O protagonista da narrativa do quarto domingo da Quaresma (João 9,1-41) é o
último da cidade, que nunca viu o sol nem o rosto da sua mãe. Tão pobre, que
nunca teve nada. E Jesus detém-se por ele, sem que lhe tenha pedido nada. Faz
um pouco de lama com pó e saliva, como argila de uma mínima criação nova, e
estende-a sobre aquelas pálpebras que cobrem a escuridão.
Nesta narrativa de pó, saliva, luz, dedo, Jesus é Deus que se contamina com
o ser humano, e é também o ser humano que se contagia de Céu; temos um olhar
mestiço, com uma parte terrena e uma parte celeste. Cada criança que nasce «vem
à luz», cada pessoa é uma mistura de Terra e de Céu, de pó e luz divina. «Todos
nós nascemos a metade, e toda a ida serve-nos para nascer do todo» (M.
Zambrano).
A nossa vida é um amanhecer contínuo. Deus amanhece em nós. Jesus é o
guardião das nossas auroras, o guardião da plenitude de vida, e segui-lo é renascer;
ter fé é adquirir «uma visão nova das coisas» (G. Vannucci). O cego é dado à
luz, nasce de novo com os seus olhos novos, narrados por uma pergunta repetida
sete vezes: como te foram abertos os olhos? Todos querem saber “como”
apoderar-se do segredo de olhos invadidos pela luz, todos com olhos ainda por
nascer.
A pergunta premente (como se abrem os olhos?) indica um desejo de mais luz
que a todos habita; desejo vital, mas que não amadurece, um rebento logo
sufocado pela poeira estéril da ideologia da instituição. O homem nascido cego
passa de miraculado a imputado. Aos fariseus não interessa a pessoa, mas o caso
do manual; não interessa a vida que voltou a esplender naqueles olhos, mas a
“sã” doutrina. E levantam um processo por heresia, porque foi curado ao sábado,
e ao sábado não se pode, é pecado…
Mas que religião é esta que não olha para o bem do ser humano, mas só para
si mesma e para as suas regras? Para defender a doutrina negam a evidência,
para defender a lei negam a vida. Sabem tudo das regras e morais e são
analfabetos do ser humano. Em vez de usufruir da luz, preferiam que voltasse
cego, e assim teriam eles razão, e não Jesus.
Dizem: Deus quer que ao sábado os cegos continuem cegos! Nada de milagres
ao sábado! A glória de Deus é a observância dos preceitos. Metem Deus contra o
ser humano, e é o pior que pode acontecer à nossa fé. Ao contrário, não, a
glória de Deus é um mendigo que se ergue, um homem que regressa com a vida
plena, «um homem finalmente promovido a homem» (P. Mazzolari). E o seu olhar
luminoso, que passa e ilumina, alegra Deus.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Mihailo K/Bigstock.com
Publicado em 19.03.2020
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Mihailo K/Bigstock.com
Publicado em 19.03.2020